quarta-feira, 15 de março de 2017

STOCKHAUSEN NO PANCADÃO: um compositor na escola pública e sua razão de estar lá

          “E tem gente que escuta isso em casa?”
“Eu escuto.”
“Por quê?”, risos.
      Depois de ouvirmos uma obra do compositor alemão Karl Stockhausen, um dos garotos da classe estava perplexo com minha resposta afirmativa. “Não só essa, mas as outras músicas que ouvimos na aula de hoje também”, completei. “E digo mais – continuei a provocação –, essas primeiras obras eletroacústicas que apreciamos hoje e outras que infelizmente não teremos tempo para ouvir tornaram, de certa forma, o funk que vocês curtem possível”. Silêncio, risos, protestos. Protestos, risos silêncio...
“Não é viagem minha”, reiterei. “Explico”, explanei brevemente a linha de influências (Acadêmicos de plantão, perdoem-me a simplificação que se fez necessária): “Funk ostentação → Funk carioca/DJ Malboro → Miami Bass/Afrika Bambaataa → Kraftwerk → Stockhausen → Música eletrônica e outras especulações sonoras da década de 50”. Ainda surpresos e um pouco incrédulos, mostrei a eles como alguns sons clássicos da música eletrônica (senoidal, onda quadrada, triangular, dente de serra) e alguns procedimentos da música concreta (colagem, cortes, fade in e fade out etc) compunham o repertório técnico e sonoro do funk.
“Mas não é a mesma coisa”, arrematou uma aluna.
                “Não, não é a mesma coisa”. Risos.
 
A aula que descrevi acima fazia parte de um plano de ensino (isto é, um conjunto de aulas) que objetivava explorar as possibilidades da voz humana do modo mais convencional ao menos usual. Na aula anterior a esta, havíamos apreciado alguns grupos e compositores (Pentatonix, Voca People, Swingle Singers, Murray Schafer, Ligeti, Gilberto Mendes, José Penalva, entre outros) que faziam empregos diferenciados da voz e percebi a necessidade de mostrar aos alunos a provável origem sonora de algumas ideias para o uso inusitado dos recursos vocais (cantar, assobiar, produzir ruídos, murmurar, estalar a língua, arrotar etc.). Isto nos levou aos primórdios da música eletrônica e o comentário sobre o Funk.
Essa exposição ao diferente, assim como a contextualização ampla do fenômeno musical e a construção de um link direto com a realidade dos estudantes foram preocupações constantes do meu trabalho em sala de aula. Organizei minha prática docente em torno da tríade apreciação-contextualização-criação. Assim, para completar a trindade pedagógica, iniciamos o processo de criação. Em grupos, os alunos foram convidados e provocados a criar músicas manipulando sonoramente palavras de poemas concretos (que naquele momento estudavam em literatura). Para manipulação, usamos ideias estudas nas obras apreciadas. Utilizamos notação gráfica (estudada no bimestre anterior) para codificar os sons em sinais gráficos. Os grupos expuseram no quadro negro suas criações. Cantamos. Ensaiamos. “De novo, até ficar bom, professor”, diziam. Gravamos em áudio as obras. O que rendeu uma diversão à parte.
Ao término, com diferentes graus de envolvimento, a garotada ouviu muita coisa diferente, discutiu, refletiu e criou suas próprias obras. Alguns continuaram a descobrir novas músicas relacionadas ao repertório apresentado. “Achei essa música do Pentatonix, já ouviu?”, comentavam comigo. Outros mostraram interesse em como os processos de criação demandam não só inspiração, mas técnica e reflexão. “Ô professor, posso ir para o agudo aqui e quando repetir ir para o grave, mas com mais força”, tentando aplicar as técnicas estudadas em suas criações.
                Essa e outras experiências como professor em uma escola pública da periferia paulistana, sempre me fizeram refletir sobre o porquê a disciplina de Arte é essencial ao ensino médio. São nesses anos que o indivíduo se encontra mais propício a reflexões abstratas, isto é, a refletir com maior grau de profundidade o mundo que o cerca. Por que não se debruçar sobre uma forma de experienciar-compreender que acompanha a humanidade desde o período Paleolítico Superior? Entre os zilhões de argumentos em favor do ensino da arte, pareceu-me mais pertinente descrever brevemente como a disciplina pode ajudar a conectar os alunos com suas experiências cotidianas, mudar suas visões sobre elas e propor novos espaços de expressão. São transformações lentas, cuja mensuração é difícil, mas essenciais para tornar-se pessoa. Por que privar os estudantes dessas oportunidades?
Eduardo Frigatti
Compositor, violonista e educador musical. Mestre em música pela UFPR. Doutorando em música na ECA-USP.

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