quarta-feira, 15 de março de 2017

SECUNDARISTAS DO PARANÁ: uma aula de cidadania

Até o momento em que escrevo este texto, as escolas ocupadas por estudantes no Paraná chegam a 688 em todo o estado, com previsão de ocuparem 750 até o final do dia de hoje (18/10). Esses são informações da página Ocupa Paraná que você pode conferir no Facebook.
                Correndo o risco de exagerar, acredito que a manifestação do movimento estudantil paranaense é de longe a maior e mais bem organizada de toda a história do país. Já superou São Paulo e Rio de Janeiro; isso quando falo apenas dos estudantes secundaristas e nono ano do ensino fundamental. Agora falando na condição de agente educacional II (administrativo) na cidade de Ponta Grossa, região do interior conhecida como Campos Gerais, e também como apoiador das ocupações, posso dizer que fiquei impressionado com a maturidade política desses jovens. Ou seja, até mesmo eu, que torço pelas meninas e meninos, não esperava a autonomia e a organização do espaço público que tive a honra de acompanhar.
                O colégio em que trabalho, o Instituto de Educação Professor César Prieto Martinez, um dos maiores e mais tradicionais da cidade, foi ocupado na segunda-feira passada (10/10) sob muita pressão de professores contrários e até mesmo das autoridades policiais que, por meio de perguntas coercitivas, tentavam desestabilizar o discurso dos líderes, ambos estudantes do terceiro ano do ensino médio. Apesar de não ter participado dessa primeira assembleia, pois não trabalho no período da manhã, fui informado das dificuldades que passaram nesse primeiro momento. O policial militar, após a sabatina, dando-se por vencido, acatou a entrega das chaves do prédio aos jovens que decidiram permanecer. Foi feita uma ata delimitando as áreas que os alunos poderiam utilizar, incluindo duas salas de aula para dormitório, banheiros masculino e feminino, sala de multimídia para as oficinas e assembleias, áreas externas, refeitório e ginásio. Duas professoras e uma pedagoga assinaram o documento se responsabilizando pelas áreas do prédio disponibilizadas.
                Dos mais de cem professores e funcionários, cerca de nove permaneceram para apoiar. Situação que já prevíamos, por conta do conservadorismo e desinteresse político dos cidadãos – incluindo funcionários da educação – de nosso estado e principalmente de nosso município. Quanto aos alunos – não é muito diferente – dos milhares matriculados, oscilam na ocupação entre setenta e noventa jovens durante o dia e são de trinta a quarenta para dormirem no local. Para poder dormir ali, os estudantes precisam ter dezesseis anos ou mais e autorização assinada pela/o responsável. Desde o início da ocupação do Instituto, os alunos demonstraram envolvimento com a pauta da manifestação e zelo pelo prédio. Quando perguntei aos professores, que ali se encontravam, sobre o comportamento e desempenho escolar daqueles estudantes, todos disseram que aqueles eram, no geral, ótimos alunos. Além disso, eles contaram com o apoio de alguns acadêmicos da UEPG, ex-alunos do Instituto.
                Quanto à organização diária, todas as decisões passam por assembleia, onde os adultos não têm direito a voto, apenas os estudantes secundaristas e do fundamental que porventura estivessem no momento. O nosso papel, como adultos, foi apenas de supervisão e apoio momentâneo até que se estabilizasse a nova situação daqueles jovens. Em nenhum momento presenciamos depredação, desavenças, brigas ou desrespeito entre eles. Muito pelo contrário, o respeito mútuo, a organização e limpeza dos espaços, assim como também a emancipação e politização desses alunos se intensificou nesses nove dias de ocupação. E, como já disse, mesmo nós, professores apoiadores, ficamos todos impressionados com tudo o que vimos. Mais que impressionados, recebemos uma aula de cidadania; nós, educadores, acostumados à política institucionalizada na forma dos sindicatos.
                Independente do resultado, os estudantes do Paraná não sairão derrotados das ocupações. Quem perde são todos aqueles que tentam criminalizar ou diminuir a primavera juvenil que se dá em nosso estado. São esses grupos que perdem uma grande oportunidade de aprender. Os estudantes saem vitoriosos, são guerreiros. Assim como os poucos professores e diretores com consciência política que podem se orgulhar e ter esperança no futuro. Que sirvam de exemplo para os demais estados do Brasil.
Rodrigo Tomé
Agente Educacional II no Instituto de Educação Professor César Prieto Martinez.
Mestrando em Linguagem, Identidade e Ensino pela UEPG (Universidade Estadual de Ponta Grossa).

MICROCONTOS de Julio Damasio

SAUDADES
Acordei, hoje, com saudades de abraçar as pessoas que já partiram. Aproveitarei meu dia visitando e levando flores para os que ainda estão ao alcance dos meus braços.

ENJOO
Na primeira gravidez, já enjoou do marido!

O MENINO CEGO
O menino cego sonhou que se apoiava nas pontas dos pés e, com os dedinhos esticados, tateava as nuvens do céu.

ESPOSA APAIXONADA
Vejo nos olhos da minha esposa um olhar perdidamente apaixonado! Quem será ele?

CONTADOR APOSENTADO
Cem, cento e uma, cento e duas mudas de flores; uma, duas, três borboletas no meu jardim!

POBRE MENINA
Pobre menina, as únicas vezes que se sentia acarinhada eram no dia de catar piolhos no abrigo.

TRADIÇÃO DE FAMÍLIA
Avó, mãe e filha na mesma esquina.

A ESPERA
Sofria com a espera. Ao recepcioná-la, com dificuldade, levantou-se da cama. Abriu a porta e com um sorriso, mandou a morte entrar.

Textos extraídos do livro “Num piscar de olhos e outros olhares” (2015, Edição do autor).

POEMAS de Renato Flief

A VOZ DA DANÇA

Já tentou desligar tua voz?
Não, não essa voz!
A voz da dança
Que não controla tua respiração
Que atua sem intenção
Embriagando tua atenção
A voz que dita tuas palavras
A voz que procura no escuro
E responde quando te perguntam
Quem é você?
A sequência exata de experiências
Lembranças são como um rio
E a voz da dança
Desliza com seu corpo dissolvendo-se
Até que tua voz seja essa água
Esse líquido que envolve
Que te faz dançar repetidas vezes
Valida a informação das cartas
Que encontro nas calçadas e nas praias
A voz da dança lhe diz coisas
Que somente você pode ouvir
Mas a pergunta das outras vozes
Quem é você?
Se tirarem tua carne
E os rios na qual a voz se navega
Quem realmente reside nas rédeas
Invisíveis das sensações?
Emoções limitadas pelo campo de visão
Dividindo as alheias com outros sedimentos
Que acumulam-se, infestando o pensar
E a voz da dança
Retorna calada
Deita-se muda
Abraça as outras
Como se fossem tuas
Imagina a lágrima
De toda repetição desnecessária
Aos passos da dança irresistível
Saberemos a consciência
Dançando firmes
Ouvindo a voz da dança



P3R FU R4 4C40

O pé, deformado, o sapato
O outdoor encarece a visão
A palavra, se perde no sentido
Pois todo sentimento é em vão
Sem nenhuma clareza
A mão pode ser o tapa
O vampirismo na expressão
Alguma lua sem vida
A maneira de imaginar-se
De medir-se
No reflexo do infinitivo
Toda calma agregada a carne
Mutilada pela incisiva apreensão
Contorna a vida com tua tristeza
Obriga a boca escondida pela directiva
Soterrada pela experiência, pela informação
Sorrir, e todo desejo recebido, é torpor
Sem ritmo, sem direção

CIDADE

Todo senso se foi
Feito chuva de verão
Vejo rostos em toda parte
Mas não vejo que parte
Não entendo, dos rostos que vejo

Toda distância imaginária
Deforma a sensibilidade do real
E todo esse silêncio
Dentre tantos sons

A cidade canta
Emudece suas células
Dentro dos ônibus
Vermelhos, correndo

A dança não tem música
Movimento de repetição
A rotina encanta o decepcionado
Faz da vítima um passo da validade

As ambulâncias cantam
A cidade grita e as pessoas
Se calam

Poemas extraídos dos blogs: “A dança dos invisíveis” (adancadosinvisiveis.wordpress.com), “Kolagens” (kolagens.wordpress.com) e “Teorias do movimento” (movimentoo.blogspot.com.br).

STOCKHAUSEN NO PANCADÃO: um compositor na escola pública e sua razão de estar lá

          “E tem gente que escuta isso em casa?”
“Eu escuto.”
“Por quê?”, risos.
      Depois de ouvirmos uma obra do compositor alemão Karl Stockhausen, um dos garotos da classe estava perplexo com minha resposta afirmativa. “Não só essa, mas as outras músicas que ouvimos na aula de hoje também”, completei. “E digo mais – continuei a provocação –, essas primeiras obras eletroacústicas que apreciamos hoje e outras que infelizmente não teremos tempo para ouvir tornaram, de certa forma, o funk que vocês curtem possível”. Silêncio, risos, protestos. Protestos, risos silêncio...
“Não é viagem minha”, reiterei. “Explico”, explanei brevemente a linha de influências (Acadêmicos de plantão, perdoem-me a simplificação que se fez necessária): “Funk ostentação → Funk carioca/DJ Malboro → Miami Bass/Afrika Bambaataa → Kraftwerk → Stockhausen → Música eletrônica e outras especulações sonoras da década de 50”. Ainda surpresos e um pouco incrédulos, mostrei a eles como alguns sons clássicos da música eletrônica (senoidal, onda quadrada, triangular, dente de serra) e alguns procedimentos da música concreta (colagem, cortes, fade in e fade out etc) compunham o repertório técnico e sonoro do funk.
“Mas não é a mesma coisa”, arrematou uma aluna.
                “Não, não é a mesma coisa”. Risos.
 
A aula que descrevi acima fazia parte de um plano de ensino (isto é, um conjunto de aulas) que objetivava explorar as possibilidades da voz humana do modo mais convencional ao menos usual. Na aula anterior a esta, havíamos apreciado alguns grupos e compositores (Pentatonix, Voca People, Swingle Singers, Murray Schafer, Ligeti, Gilberto Mendes, José Penalva, entre outros) que faziam empregos diferenciados da voz e percebi a necessidade de mostrar aos alunos a provável origem sonora de algumas ideias para o uso inusitado dos recursos vocais (cantar, assobiar, produzir ruídos, murmurar, estalar a língua, arrotar etc.). Isto nos levou aos primórdios da música eletrônica e o comentário sobre o Funk.
Essa exposição ao diferente, assim como a contextualização ampla do fenômeno musical e a construção de um link direto com a realidade dos estudantes foram preocupações constantes do meu trabalho em sala de aula. Organizei minha prática docente em torno da tríade apreciação-contextualização-criação. Assim, para completar a trindade pedagógica, iniciamos o processo de criação. Em grupos, os alunos foram convidados e provocados a criar músicas manipulando sonoramente palavras de poemas concretos (que naquele momento estudavam em literatura). Para manipulação, usamos ideias estudas nas obras apreciadas. Utilizamos notação gráfica (estudada no bimestre anterior) para codificar os sons em sinais gráficos. Os grupos expuseram no quadro negro suas criações. Cantamos. Ensaiamos. “De novo, até ficar bom, professor”, diziam. Gravamos em áudio as obras. O que rendeu uma diversão à parte.
Ao término, com diferentes graus de envolvimento, a garotada ouviu muita coisa diferente, discutiu, refletiu e criou suas próprias obras. Alguns continuaram a descobrir novas músicas relacionadas ao repertório apresentado. “Achei essa música do Pentatonix, já ouviu?”, comentavam comigo. Outros mostraram interesse em como os processos de criação demandam não só inspiração, mas técnica e reflexão. “Ô professor, posso ir para o agudo aqui e quando repetir ir para o grave, mas com mais força”, tentando aplicar as técnicas estudadas em suas criações.
                Essa e outras experiências como professor em uma escola pública da periferia paulistana, sempre me fizeram refletir sobre o porquê a disciplina de Arte é essencial ao ensino médio. São nesses anos que o indivíduo se encontra mais propício a reflexões abstratas, isto é, a refletir com maior grau de profundidade o mundo que o cerca. Por que não se debruçar sobre uma forma de experienciar-compreender que acompanha a humanidade desde o período Paleolítico Superior? Entre os zilhões de argumentos em favor do ensino da arte, pareceu-me mais pertinente descrever brevemente como a disciplina pode ajudar a conectar os alunos com suas experiências cotidianas, mudar suas visões sobre elas e propor novos espaços de expressão. São transformações lentas, cuja mensuração é difícil, mas essenciais para tornar-se pessoa. Por que privar os estudantes dessas oportunidades?
Eduardo Frigatti
Compositor, violonista e educador musical. Mestre em música pela UFPR. Doutorando em música na ECA-USP.